domingo, 13 de setembro de 2009

poesia de cascais #19 - Vasco Graça Moura



falamos da chuva e da história e das catástrofes, mas eu aqui
estou, sem renunciar ao meu conforto e nem sequer a alguma
boa consciência, a alguma propensão para o consumo.
europeu e burguês, liberal e decadente, ne du tout fol ne du tout sage,
nem excessivamente solidário, nem excessivamente cúmplice,

tive amores e desamores, amarguras, negligências,
problematizei, exaltei-me e deprimi-me variamente,
e uma ordem do mundo é para mim como a colunata de piero,
modulada num espaço da razão: os sentimentos,
o mais lancinante, o mais prosaico, o mais sublime,

tornam-na deste mundo, apenas dele. e eu persisto
nas minhas contradições e nada vou mudar
no que não muda. passeio pelas manhãs de cascais
na luz molhada do inverno, e essa é a dimensão salina
das gaivotas e da maresia nas almas dos que dão

a volta dos tristes junto ao mar, entre heródoto e o
new york review of books. e todavia a música persiste,
enlaçando os destinos e o lugares, e vibra em mim,
que a trauteio e recuso, reconheço e deslembro,
interrompo e retomo, e há marcas na areia fosca,

onde as ondas se encovam regredindo, e vários pedregulhos,
lá em baixo, e os limos das coisas indecufráveis,
negros esgorregadios, frisados, repugnantes
quando vistos de perto na sua hirsuta qualidade.
tudo se faz dessas recitações, marulhos, roncas e

buzinas a entrarem-me pelo espaço da casa, como
sombras num halo dúbio dos espelhos, tensas,
misturadas memórias a desoras. uma carta no inverno
também é um golpe de misericórdia, traz clandestinamente
vaivéns, contrariedades, resistências, fluxos.

3 comentários:

Lina Arroja (GJ) disse...

Sabe que mais, RAA, ainda ontem nos cruzámos na Foz junto ao mar. Um passeio marítimo cheio de contradições tal como no poema.

Ricardo António Alves disse...

Tem piada. Está em casa...
Quando ele vivia em Bicesse, cruzávamo-nos muitas vezes na Garrett.

mariasa disse...

eu vi-te na leitaria.

:)

 
Golf
Golf